quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O passageiro, pessoa de contrastes.


"Minhas memórias, antes que as esqueça."
Por Carlos Senra



O passageiro, pessoa de contrastes.

O passageiro é sempre passageiro. Por mais que viaje e por mais horas de vôo que acumule, o passageiro nunca será fixo, será sempre passageiro.
Anualmente, milhares deles vão à Disney levando seus filhos; sacoleiras entopem os vôos para N. York; aristocratas falidos vão à Los Angeles acreditando que a cidade ainda detém o antigo glamour; remediados apinham as listas de espera dos vôos para a Europa, sem falar nos descendentes, que vão ao Oriente torrar o saco dos ancestrais, que não têm como negar-lhes morada na busca por novas oportunidades. Juntos formam uma massa interessante, porém pastosa e sem rosto, à qual as empresas aéreas denominam "usuários".
Os usuários querem entrar no avião todos ao mesmo tempo.
Esbarram o ombro no batente da porta e olham feio para o outro que entrou ao mesmo tempo e esbarrou o outro ombro no outro batente. Brigam pela janelinha, mesmo quando o vôo é noturno e não dá pra ver nada. Quando a conseguem, passam a noite inteira levantando para ir ao banheiro, incomodando o outro usuário que também está com o ombro doído.
Fazem barulho, bagunça, desfolham jornais, roubam talheres, copos, xícaras, travesseiros, mantas, fones de ouvido; assemelham-se a uma nuvem de gafanhotos praticando um saque a que chamam "souvenir". Levam revistas de palavras cruzadas que jamais serão resolvidas e acham-se super malandros sentindo roçar na barriga o incômodo saco plástico que esconde os "travellers-cheques". Transformam os banheiros num lodaçal, num Everglades de mijo.
Sentem-se uns aventureiros, uns Indiana Jones ao contrário, já que estão viajando de um país de terceiro mundo para lugares um pouquinho mais civilizados. Querem abraçar o Mickey e apertar a mão do Pateta; querem arrancar uma lasquinha de tinta da Estátua da Liberdade; querem pisar nas estrelas da Calçada da Fama.
Torcem para que neve em pleno verão e alugarão carros dos quais falarão pelos próximos dez anos. Tiram centenas de fotos horríveis, mostrando sempre os mesmos sorrisos sem graça e sempre com as pessoas portando sacolas de compras.
Os que já foram mais de uma vez fazem questão de explicitar isso logo no primeiro momento da conversa: "da última vez que estivemos em Paris...". O "última vez" é dito em itálico e negrito, deixando claro que ele já esteve lá outras vezes.
Já o de primeira viagem compara o avião ao ônibus no qual fez a excursão a Foz do Iguaçu. E se acha criativo fazendo a inevitável comparação dos solavancos do avião aos buracos da estrada.
Pedem para conhecer a cabine de comando e lá chegando podem ser divididos em dois grupos: o dos experts e o dos babões.
O expert, por ser expert, já entra na cabine de dedo em riste, apontando com concreta certeza "ali é o radar, não é?".
O babão entra quieto, compenetrado, olha tudo com muita atenção e por último o painel do teto. Por estar olhando para cima fica com a boca semi-aberta. E dispara, engolindo a saliva: "poxa, quanto botão! Como é que vocês decoram tudo isso?".
O passageiro-padrão sempre quer a comida que não tem mais, e acha um absurdo o avião não estar equipado para atender a todos os seus desejos gastronômicos, sejam quais forem.
Certa vez um me pediu pizza. De calabresa, com bastante cebola. Desculpei-me por não poder atendê-lo, confidenciando-lhe no ouvido que a máquina que espremia os tomates para o molho havia quebrado.
Embarcando em Seul ele quer jornal de Porto Velho. De hoje. E não adianta explicar que o Brasil está doze horas atrás do fuso da Coréia, fato incontornável, que faz o jornal ser sempre de ontem, nunca de hoje. Mas aí ele não quer mais, afinal, é um homem à frente do seu tempo.
E tudo isso sem falar naqueles que voltam com dificuldades para entender o português.
Compreende-se. Afinal passaram longos sete dias em Miami.
E com todo esse tumulto e confusão foi preciso que as empresas encontrassem um profissional capaz de botar ordem naquela Babel de asas. Alguém capaz de controlar a massa, uma espécie de PM sem cassetete e que fosse, ainda, o responsável pela segurança. Era preciso alguém otimista, corajoso e trouxa o suficiente para topar a parada.
E assim, surgiu o comissário.

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